A China quer ser potência. Mas vai precisar lidar com a Índia antes

 

Muçulmanas chinesas (AP)

Desde o início da pandemia do Covid 19 a discussão em vários fóruns é se a China foi a responsável pela doença que paralisou o mundo em 2020. Se ela criou as condições para disseminação do vírus, desde a falta de higiene generalizada em mercados que vendem animais exóticos vivos para serem comidos, ou mesmo na falta de transparência junto às autoridades sanitárias mundiais. Ambas hipóteses tiveram adeptos em várias instâncias de poder ao redor do mundo.

A China vem mostrando ao mundo que busca impor sua condição de potência econômica e militar. Gasta muito em defesa, faz questão de mostrar suas novidades tecnológicas aliadas ao seu poderio bélico e ainda promove uma propaganda feroz de suas narrativas em diversos setores da vida.

A China é uma potência nuclear, tem ogivas atômicas e condições de lançar seus mísseis para várias partes do mundo. Ela já domina a chamada Tríade Nuclear, que é a capacidade de mandar foguetes a partir de bases terrestres, de embarcações em alto-mar e agora, mais recentemente, teve provada sua capacidade de lançar mísseis a partir de aviões que voam muito alto e com grande autonomia de voo.

Para muitos, a China é o dragão que quer dominar o mundo.

Ao mesmo tempo, o país tem ao seu lado sul um importante inimigo geopolítico de peso. A Índia, segundo país mais populoso do mundo com seus 1,34 bilhão de habitantes – um bilhão e trezentos e quarenta milhões de pessoas – rivaliza como potência humana com a China. Os chineses são pouco mais de 150 milhões mais populosos que os indianos, na casa dos 1,5 bilhão.

A Índia rivaliza com a China há mais de cinquenta anos, especialmente pelo conflito fronteiriço na região da Cachemira, com diversos pequenos incidentes armados nas últimas décadas. O mais recente ocorreu na região do Himalaia, quando vinte soldados indianos foram mortos em um ataque chinês.

Os dois países são países nucleares, com domínio total de todo o ciclo do combustível, da fabricação de bombas e sua miniaturização para serem colocadas na ponta de mísseis. Além, é claro, da capacidade de lançá-los a qualquer momento.

Apesar da vontade e da narrativa chinesas, há alguns pontos que podem ser colocados como obstáculos a uma pretensão da China em ser a potência dominante do mundo. Em primeiro lugar, a Índia não vai deixar.

Em seguida, há as diferenças básicas no sistema político nos dois países. A China é um regime comunista, de partido único, desde a tomada do poder pelos guerrilheiros liderados por Mao Tsé-Tung no final dos anos 1940. De lá para cá, o marxismo clássico transmutou-se em uma vertente típica do país asiático já chamada de maoísmo. Baseado em centralismo de poder e planificação da economia, o sistema comunista chinês não admite eleições, contraditórios e dissidências. A oposição é tratada com repressão cruel.

A religião na China também é desestimulada. Apenas recentemente, os poucos católicos chineses puderam ter alguma liberdade de culto. Claro, dentro dos padrões chineses. Os bispos e cardeais precisam da anuência do Partido Comunista Chinês para serem reconhecidos como lideranças. Tudo com a bênção do Papa Francisco.

Já a Índia é a maior democracia do mundo, funcionando com voto a cada dois, quatro ou cinco anos (dependendo do cargo) desde sua independência do Império Britânico em fins de 1940. Há na Índia uma miríade de instituições partidárias, dos mais diversos matizes. O voto, a campanha eleitoral e o corpo a corpo funcionam. Assim como existem várias garantias para o funcionamento das eleições. Além, é claro, da representação dos diversos segmentos religiosos compõem o intrincado sistema indiano. Há a maioria hindu, os muçulmanos, os sikhs, tamis e cristãos. Todos, de uma forma ou de outra, estão representados nas esferas de governo indiano.

Aliás, como diz Cândido Mendes, a imensidão das tradições religiosas permite à Índia o desenvolvimento de uma estrutura subjetiva ampla, dotada de alto nível de gratificação simbólica individual. Nessa integração litúrgica de dinamismo social, a cultura indiana já realizou o decantamento do imaginário das retribuições. E nisso estão as gratificações materiais terrenas e a representação política.


Indianos gente boa a caminho de Pune 


Na China, o simbólico está representado pelo conjunto de dogmas que o Partido Comunista Chinês pensa.

Em terceiro lugar, há um componente a obstaculizar o crescimento da China como potência: a religião.

A Índia tem maioria hindu. O Hinduísmo talvez seja a religião importante mais antiga do mundo, com especialista falando em mais de 5 mil anos antes de Cristo. Dela derivam centenas de outras, entre elas, o Budismo (o Buda histórico teria sido um príncipe hindu). Ao mesmo tempo, a população muçulmana na Índia não para de crescer. Há projeções que  colocam a Índia como o país de maior população islâmica do mundo em 2050, com um naco variando entre 250 a 300 milhões de seguidores de Maomé. Claro, os hindus continuarão a serem os mais números, mas terão, cada vez mais, que conviver com os muçulmanos.

Por isso, a Índia é um país religioso por excelência, contrastando com a China, que oficialmente bane a religião.

A presença de muitos muçulmanos na Índia, na Indonésia, em Bangladesh, Paquistão e Filipinas, tem tudo para ser o freio de um crescimento hegemônico chinês. De todos estes países listados, apenas o Paquistão tem relações carnais com a China (Paquistão, aliás, também tem bombas atômicas, sendo o único islâmico a possuí-las). O restante, vê a China com desconfiança.

Os muçulmanos de todos os lugares não têm gostado de como o governo chinês tem tratado a minoria Uigur, presente no noroeste do país, na Ásia Central. Os uigures são chineses sem os olhos puxados, mais parecidos com os turcos do que os chineses do imaginário ocidental. Ultimamente, várias notícias vêm dando conta de que há uma certa perseguição estatal contra os uigures, que professam a fé muçulmana. No total, estima-se que mais de 25 milhões de chineses – em sua maioria nas províncias mais ao leste da China – sejam muçulmanos.

E é aí que surge o obstáculo. Muçulmanos de todo o mundo estão chateados com a forma com que o governo chinês trata seus irmãos do Corão são tratados na China, especialmente da província de Xinjiang.

Esse desconforto pode atrapalhar os planos de Pequim em se tornar uma potência hegemônica.

 Em quarto lugar, para não deixar esse texto muito extenso, já uma série de tensões internas que podem vir a ser um problemão para o Partido Comunista Chinês em um futuro próximo. A China é um conglomerado de nações. O mandarim, como língua falada e alfabeto, une o país culturalmente. Mas há um crescente desconforto entre as províncias mais afastadas do litoral abastado. No interior chinês, há um crescente movimento de descontentamento com o planejamento econômico centralizado. Há grupos de tendência liberal, que pregam, inclusive, uma mudança de regime, e também há grupos de jovens marxistas que acreditam que o PC chinês afastou-se do marxismo clássico. Ambos grupos são reprimidos pelo poder central.

Religião, política interna e conflitos territoriais podem frear o ímpeto chinês.

Voltando à Índia. O país da ioga tem um capitalismo pujante e uma profusão na produção de cientistas. A Índia já conquistou o espaço, sendo um dos países que mais lançam satélites com seus próprios foguetes. É uma potência na matemática (a cultura do ábaco ajudou o domínio com os números, aliada ao abstratismo extremo do hinduísmo) e hoje é uma espetacular e crescente indústria farmacêutica. Sem contar a presença indiana na indústria global. Jaguar, Land Rover, Tata, Royal-Enfield, Mahindra e Ssangyong são marcas dominadas pelo capital indiano.

Sundar Pichai, o todo-poderoso do Google (Alphabet)


Além disso, grandes empresas mundiais, como Pepsi, Mastercard, Reckitt Benckiser, Harman, Microsoft e Alphabet (dona da Google), são comandadas por executivos indianos. Sundar Pichai Sundararajan (Google) e Satya Nadela (Microsoft) são grandes nomes comandando boa parte das empresas da nova economia mundial.

E o Brasil?

Ah... o Brasil. O Brasil é muito bem quisto pelos indianos de todas as classes. Eles enxergam no Brasil a contraparte no ocidente fruto do processo colonial português dos séculos 16 e 17. Indianos vêm os brasileiros como parte de um mesmo sistema colonial que gerou uma complexidade cultural em vários sentidos. Eles gostam dos brasileiros, inclusive, pelo caldeamento miscigenatório que gerou a pele morena.

Brasil e Índia, como escreve Ignacy Sachs, são países de dimensões continentais. Duas baleias no oceano global. Têm poderes regionais de porte e responsabilidades mundiais, apesar de suas diferenças sociais, histórias e culturais, têm muitas similitudes que podem torná-los ainda mais aliados.

Antes que a China possa ser potência hegemônica com seu comunismo maoísta, talvez o Brasil possa ter na Índia um parceiro ainda maior, no comércio, na indústria a na cultura. (Miguelito Medeiros)

O autor, andando por Mumbai


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